Política, Liverpool e Hillsborough: o futebol regido pelo ferro

No dia 15 de abril de 1989, 96 torcedores do Liverpool foram até Sheffield assistir o seu clube do coração no que deveria ser mais um jogo normal de futebol. Válido pela semifinal da Copa da Inglaterra — A F.A. Cup — , o dia logo se tornou em um desastre que marcou para sempre o futebol inglês.
Para além de cobrir somente a tragédia, é importante nos contextualizarmos sobre o cenário da Inglaterra nos anos 1980, no âmbito político e esportivo, pois ambos se conectam e mostram fatores importantes para o incidente em Sheffield.
POLÍTICA
É impossível falar sobre a Inglaterra da década de 1980 sem citar Margaret Thatcher. Para as gerações mais novas, Thatcher foi primeira ministra do Reino Unido de 1979 a 1990, conhecida como “Dama de Ferro” e principal figura do neoliberalismo.

O escritor David Harvey, no livro “Breve história do neoliberalismo” define o neoliberalismo como “uma teoria de práticas político-econômicas que propõem que o bem estar humano pode ser avançado de melhor forma através da libertação do empreendedorismo e das habilidades individuais dentro de um sistema caracterizado por direitos à propriedade privada fortes, livre mercado e livre troca.”
- Em resumo, o Estado é instrumentalizado para garantir o livre mercado. As principais características são: privatizações, cortes de gastos públicos e desregulamentação do mercado, além da forte defesa da propriedade privada.
- A lógica da “mão invisível” pode ser usada para resolver problemas interpessoais, o que gera uma sociedade cada vez mais individual.
Importante resumir a ideologia da qual Thatcher fez parte pois a mesma é uma figura extremamente controversa e odiada por muitas pessoas no Reino Unido. Não a toa, nos dez anos de seu falecimento (08/04), lembraram das “comemorações” de sua partida e um vídeo antigo de torcedores prometendo uma festa na sua morte.
Figura do Partido Conservador, Thatcher ficou marcada por episódios como sua guerra contra o IRA — Exército Republicano Irlandês — durante o período conhecido como “The Troubles”, declarar abertamente a pena de morte por enforcamento, falas xenofóbicas, racismo, entre outras coisas (mais informações nos textos alternativos nas imagens abaixo)
Mas uma das principais polêmicas envolvendo a Thatcher foi a briga com os sindicatos do aço e carvão, no que causou em aumento do desemprego, episódios de violência entre mineradores e policiais e o fim da indústria carvoeira.
LIVERPOOL
“Tá Lucas, mas onde é que o futebol entra nessa questão?” Veja, os sindicatos eram a base das torcidas organizadas dos clubes ingleses. E a Dama de Ferro sempre quis combatê-los. Então ela tinha uma chance real de acabar com o poder dos sindicatos.
Thatcher se elegeu prometendo acabar com os sindicatos e diminuir os subsídios do governo para a indústria. A Dama de Ferro temia outra epidemia de greves como correu nos anos 1970. “Se não deu lucro suficiente, a indústria vai fechar. Não importa as consequências.”
Liverpool é uma cidade diferente da Inglaterra: é uma cidade trabalhista, sindical e bem esquerdista. Ou seja, tudo que Thatcher odiava e sempre quis combater. Além disso, outro grande problema da terra dos Beatles é a sua distância para Londres.
Thatcher também adotou uma política mais “londrina” em seu governo, deixando de lado cidades importantíssimas, como o caso de Liverpool. Ela fez de tudo para vencer os sindicatos. E conseguiu. O que causou desemprego e uma revolta gigante na população.
Outro grande fator que explica o ódio de Thatcher aos coletivos foram os hooligans. Na década de 1980, o futebol inglês vivia um cenário de precarização nos estádios, era comum o uso de grades para impedir invasões ao campo e muitas brigas envolvendo hooligans.
O governo britânico classificava os torcedores como arruaceiros. A briga da Thatcher já era antiga: em 1985, ocorreu a Tragédia de Heysel, onde hooligans causaram a morte de mais de 30 torcedores da Juventus na final da Champions League contra o Liverpool.
HILLSBOROUGH
Sabendo de tudo isso, podemos seguir para o evento que mudou para sempre o futebol inglês. Dia 15 de abril de 1989, no Hillsborough Stadium, em Sheffield. Pela semifinal da FA Cup, Liverpool e Nottingham Forest entrariam em campo naquele sábado.

Mesmo com muito mais torcida, o Liverpool foi destinado ao menor setor do estádio. A torcida dos Reds ficou limitada a um espaço e entradas menores. Isso virou um perigoso problema.
Os torcedores foram entrando no estádio, mas a polícia não soube organizar a entrada dos mesmos. Depois, novos portões foram abertos em um setor que já estava em superlotação. A segurança do estádio deixou entrar o dobro do número de torcedores que o permitido no setor.
Logo aos 3 minutos de jogo, com uma bola na trave, a movimentação no setor dos torcedores do Liverpool piorou. Alguns torcedores avisaram os atletas da situação. Mesmo com alguns torcedores caindo no campo, a polícia achou que era uma invasão.

Os gritos de desespero chamaram a atenção dos jogadores, que alertaram a arbitragem, mas pouco se sabia o que estava realmente acontecendo naquele momento. O caos estava instalado e o desespero tomou conta de todo o estádio.
Torcedores desmaiaram no campo, outros tentavam escalar o estádio para fugir. No fim, 96 pessoas perderam suas vidas e mais de 700 pessoas ficaram feridas. As autoridades culparam os hooligans pela invasão, dizendo que eles forçaram sua entrada no estádio.
O The Sun tentou vender a versão dos policiais, colocando a culpa dos torcedores. O periódico alegou que torcedores mijaram nos policiais, roubaram os mortos e bateram nos médicos. Nenhuma das alegações se comprovou verdadeira.
Além disso, descobriu-se que os depoimentos das vítimas foram manipulados para colocar a culpa na torcida. Mais de 150 depoimentos foram alterados pelas autoridades. Segundo o relatório, 41 pessoas poderiam ter sido salvas, se a ajuda médica fosse mais efetiva e rápida.
Daniel Hunt, torcedor do Liverpool, afirma como essa farsa se instalou na sociedade: “O sistema da Inglaterra preferia que Liverpool não existisse. É preciso entender o preconceito com Liverpool. Não é uma cidade inglesa comum. Tem muitos irlandeses, imigrantes de vários lugares do mundo, é muito esquerdista. Liverpool sempre foi um pé no saco do sistema britânico. Quando houve as mentiras, aquela propaganda, já havia um preconceito. Havia a reputação de (moradores da cidade) serem criminosos, maliciosos. Não explica o que vimos, mas explica um pouco a hostilidade e como isso foi facilmente aceito. Era a confirmação.”

A justiça pelo caso só foi acontecer em 2012, 23 anos depois, quando o governo britânico pediu desculpas pela tragédia. Três anos depois, David Duckenfield, chefe policial em Hillsborough, assumiu a culpa e pediu desculpas aos familiares das vítimas. Em 2016, a Justiça inglesa finalizou as investigações e concluiu que houve crime de negligência dos responsáveis pela segurança. A torcida do Liverpool, claro, nunca esqueceu dos seus.
Nunca esqueceu das vítimas que foram tratadas como culpadas pela tragédia. Muitas homenagens aconteceram desde então, seja mosaicos ou o próprio memorial no estádio de Anfield, com os nomes dos 96 torcedores que nunca voltaram para casa.