Política, Liverpool e Hillsborough: o futebol regido pelo ferro

Lucas Silva
6 min readJun 19, 2023

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Como o cenário do futebol inglês e as políticas públicas da era Margareth Thatcher resultaram na maior tragédia da história do futebol inglês

No dia 15 de abril de 1989, 96 torcedores do Liverpool foram até Sheffield assistir o seu clube do coração no que deveria ser mais um jogo normal de futebol. Válido pela semifinal da Copa da Inglaterra — A F.A. Cup — , o dia logo se tornou em um desastre que marcou para sempre o futebol inglês.

Para além de cobrir somente a tragédia, é importante nos contextualizarmos sobre o cenário da Inglaterra nos anos 1980, no âmbito político e esportivo, pois ambos se conectam e mostram fatores importantes para o incidente em Sheffield.

POLÍTICA

É impossível falar sobre a Inglaterra da década de 1980 sem citar Margaret Thatcher. Para as gerações mais novas, Thatcher foi primeira ministra do Reino Unido de 1979 a 1990, conhecida como “Dama de Ferro” e principal figura do neoliberalismo.

Margaret Thatcher ficou marcada pela tomada de decisões fortes durante seu governo além da alta impopularidade e rejeição da classe trabalhadora. A alcunha “Dama de Ferro” foi dada por um jornal soviético na década de 1970 e que se associou ao seu estilo de liderança

O escritor David Harvey, no livro “Breve história do neoliberalismo” define o neoliberalismo como “uma teoria de práticas político-econômicas que propõem que o bem estar humano pode ser avançado de melhor forma através da libertação do empreendedorismo e das habilidades individuais dentro de um sistema caracterizado por direitos à propriedade privada fortes, livre mercado e livre troca.”

  • Em resumo, o Estado é instrumentalizado para garantir o livre mercado. As principais características são: privatizações, cortes de gastos públicos e desregulamentação do mercado, além da forte defesa da propriedade privada.
  • A lógica da “mão invisível” pode ser usada para resolver problemas interpessoais, o que gera uma sociedade cada vez mais individual.

Importante resumir a ideologia da qual Thatcher fez parte pois a mesma é uma figura extremamente controversa e odiada por muitas pessoas no Reino Unido. Não a toa, nos dez anos de seu falecimento (08/04), lembraram das “comemorações” de sua partida e um vídeo antigo de torcedores prometendo uma festa na sua morte.

Figura do Partido Conservador, Thatcher ficou marcada por episódios como sua guerra contra o IRA — Exército Republicano Irlandês — durante o período conhecido como “The Troubles”, declarar abertamente a pena de morte por enforcamento, falas xenofóbicas, racismo, entre outras coisas (mais informações nos textos alternativos nas imagens abaixo)

Mas uma das principais polêmicas envolvendo a Thatcher foi a briga com os sindicatos do aço e carvão, no que causou em aumento do desemprego, episódios de violência entre mineradores e policiais e o fim da indústria carvoeira.

Policiais marchando contra manifestantes no episódio conhecido como “Batalha de Orgreave”, na qual aproximadamente 5 mil pessoas fizeram um piquete em uma fábrica e foram confrontados com 6 mil policiais que resultou em 120 pessoas feridas e 95 prisões.

LIVERPOOL

“Tá Lucas, mas onde é que o futebol entra nessa questão?” Veja, os sindicatos eram a base das torcidas organizadas dos clubes ingleses. E a Dama de Ferro sempre quis combatê-los. Então ela tinha uma chance real de acabar com o poder dos sindicatos.

Thatcher se elegeu prometendo acabar com os sindicatos e diminuir os subsídios do governo para a indústria. A Dama de Ferro temia outra epidemia de greves como correu nos anos 1970. “Se não deu lucro suficiente, a indústria vai fechar. Não importa as consequências.”

Liverpool é uma cidade diferente da Inglaterra: é uma cidade trabalhista, sindical e bem esquerdista. Ou seja, tudo que Thatcher odiava e sempre quis combater. Além disso, outro grande problema da terra dos Beatles é a sua distância para Londres.

Em texto publicado pelo Trivela, Anna Carolina Fagundes, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de East Anglia, em Norwich, comentou: “Londres é um país em si mesmo. O governo fica lá, tudo fica lá. E os caras de Londres veem Liverpool como caipira. Eles têm sotaque próprio, cultura própria, comida própria. Mesmo depois dos Beatles e do rock and roll britânico, há a imagem de que tudo ‘para cima’ é caipira. Então a primeira reação foi: os caipiras estão se matando, dane-se. Quando as notícias começaram a chegar, viram que foi um pouco mais sério”.

Thatcher também adotou uma política mais “londrina” em seu governo, deixando de lado cidades importantíssimas, como o caso de Liverpool. Ela fez de tudo para vencer os sindicatos. E conseguiu. O que causou desemprego e uma revolta gigante na população.

Outro grande fator que explica o ódio de Thatcher aos coletivos foram os hooligans. Na década de 1980, o futebol inglês vivia um cenário de precarização nos estádios, era comum o uso de grades para impedir invasões ao campo e muitas brigas envolvendo hooligans.

O governo britânico classificava os torcedores como arruaceiros. A briga da Thatcher já era antiga: em 1985, ocorreu a Tragédia de Heysel, onde hooligans causaram a morte de mais de 30 torcedores da Juventus na final da Champions League contra o Liverpool.

Policiais em meio a destruição causada em Heysel

HILLSBOROUGH

Sabendo de tudo isso, podemos seguir para o evento que mudou para sempre o futebol inglês. Dia 15 de abril de 1989, no Hillsborough Stadium, em Sheffield. Pela semifinal da FA Cup, Liverpool e Nottingham Forest entrariam em campo naquele sábado.

Liverpool tinha um bom elenco na temporada 1988/89. Capitaneados por Sir Kenny Dalglish, jogador e técnico do time, o time tinha ainda Ian Rush, Peter Beardsley e John Barnes como principais nomes.

Mesmo com muito mais torcida, o Liverpool foi destinado ao menor setor do estádio. A torcida dos Reds ficou limitada a um espaço e entradas menores. Isso virou um perigoso problema.

Os torcedores foram entrando no estádio, mas a polícia não soube organizar a entrada dos mesmos. Depois, novos portões foram abertos em um setor que já estava em superlotação. A segurança do estádio deixou entrar o dobro do número de torcedores que o permitido no setor.

Logo aos 3 minutos de jogo, com uma bola na trave, a movimentação no setor dos torcedores do Liverpool piorou. Alguns torcedores avisaram os atletas da situação. Mesmo com alguns torcedores caindo no campo, a polícia achou que era uma invasão.

Tim Vickery comenta que o desastre de Hillsborough antecipou as medidas necessárias para o futebol inglês: “Até Hillsborough acontecer, você tinha que passar com a carteirinha de identidade na catraca. Isso não havia como dar certo. Não tínhamos tecnologia para isso”. Ele ainda complementou dizendo que Thatcher não gostava do futebol e tentava atacá-lo de todas as formas. “É brincadeira alguém falar que essa mulher salvou o futebol inglês. Ela nunca se importou com o futebol. Se fosse por ela, não havia nem torcedores nos estádios.”

Os gritos de desespero chamaram a atenção dos jogadores, que alertaram a arbitragem, mas pouco se sabia o que estava realmente acontecendo naquele momento. O caos estava instalado e o desespero tomou conta de todo o estádio.

Torcedores desmaiaram no campo, outros tentavam escalar o estádio para fugir. No fim, 96 pessoas perderam suas vidas e mais de 700 pessoas ficaram feridas. As autoridades culparam os hooligans pela invasão, dizendo que eles forçaram sua entrada no estádio.

Em 27 de julho de 2021, mais de 32 anos depois da tragédia, morreu Andrew Devine, que sofreu danos cerebrais e permaneceu em estado vegetativo, sendo considerado oficialmente a 97.ª vítima

O The Sun tentou vender a versão dos policiais, colocando a culpa dos torcedores. O periódico alegou que torcedores mijaram nos policiais, roubaram os mortos e bateram nos médicos. Nenhuma das alegações se comprovou verdadeira.

Torcedores protestam contra o The Sun pedindo justiça aos 96 mortos em Hillsborough. Demorou décadas para o jornal reconhecer seus erros na cobertura do caso e até hoje, o diário é odiado em Liverpool.

Além disso, descobriu-se que os depoimentos das vítimas foram manipulados para colocar a culpa na torcida. Mais de 150 depoimentos foram alterados pelas autoridades. Segundo o relatório, 41 pessoas poderiam ter sido salvas, se a ajuda médica fosse mais efetiva e rápida.

Daniel Hunt, torcedor do Liverpool, afirma como essa farsa se instalou na sociedade: “O sistema da Inglaterra preferia que Liverpool não existisse. É preciso entender o preconceito com Liverpool. Não é uma cidade inglesa comum. Tem muitos irlandeses, imigrantes de vários lugares do mundo, é muito esquerdista. Liverpool sempre foi um pé no saco do sistema britânico. Quando houve as mentiras, aquela propaganda, já havia um preconceito. Havia a reputação de (moradores da cidade) serem criminosos, maliciosos. Não explica o que vimos, mas explica um pouco a hostilidade e como isso foi facilmente aceito. Era a confirmação.”

Um fato bem curioso envolve o maior rival do Liverpool, o Everton. Os Toffees prestaram várias homenagens às vítimas e nem a mais feroz rivalidade foi mais forte que o sentimento de solidariedade e empatia. O clube azul saiu em defesa de seu rival.

A justiça pelo caso só foi acontecer em 2012, 23 anos depois, quando o governo britânico pediu desculpas pela tragédia. Três anos depois, David Duckenfield, chefe policial em Hillsborough, assumiu a culpa e pediu desculpas aos familiares das vítimas. Em 2016, a Justiça inglesa finalizou as investigações e concluiu que houve crime de negligência dos responsáveis pela segurança. A torcida do Liverpool, claro, nunca esqueceu dos seus.

Nunca esqueceu das vítimas que foram tratadas como culpadas pela tragédia. Muitas homenagens aconteceram desde então, seja mosaicos ou o próprio memorial no estádio de Anfield, com os nomes dos 96 torcedores que nunca voltaram para casa.

Torcedor do Liverpool com uma camisa especial escrita “96: Jamais esquecer”. E sim, nunca nos esqueceremos.

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Lucas Silva
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Written by Lucas Silva

Jornalista. São Paulo, Brasil. Passagens por Torcedores.com, Esportudo e Bolavip Brasil.

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